A velhinha da beira do rio



Saiu do trabalho no final da tarde sentindo necessidade de relaxar, decididamente aquele não havia sido um dos seus melhores dias, parecia que o mundo tinha virado de cabeça para baixo, nada estava dando certo. Deu partida no carro lembrando-se do barzinho na beira do rio completamente afastado dos outros bares na praia de Fazendinha, a vontade de tomar um copo de cerveja gelada fez com que sentisse o gosto antecipado da bebida. Precisava ficar só e pensar nos problemas que tinha à sua frente.
Tomou o primeiro copo de cerveja olhando o efeito dos raios do sol nas nuvens de fim de tarde, sentindo a brisa que vinha do rio brincar com seus cabelos e escutando a musica que vinha do bar. Retirou os sapatos, a camisa, enrolou as pernas da calça e caminhou toda extensão da praia. Incrível como a visão do anoitecer no amazonas o deixava de bem com a vida. Parou no inicio da mata sem perceber nada ao seu redor absorvido pela beleza do lugar. A voz suave vinda de algum lugar o trouxe de volta a realidade.
— Está triste doutor?
— Não apenas pensando em como a linha que separa o imaginado e o realizado é fina.
— Não entendi doutor.
— Estava pensando que a vida que levo hoje é totalmente diferente da que imaginei quando jovem.
— E, o senhor tem razão, nem sempre o que pensamos é o que conseguimos fazer.
— Nos meus sonhos de adolescente me imaginava como um aventureiro que sai pelo mundo salvando vidas, conquistando fronteiras, me tornando uma lenda. Não uma lenda qualquer, seria uma lenda nunca esquecida.
— Desculpe doutor, não sou letrada como o senhor, mas se entendi direito o senhor acha que ser lenda é nunca ser esquecido?
— É exatamente isso que quero dizer.
— O senhor está enganado doutor.
— Por que?
— Olhe doutor eu já vivi muito e conheço muita coisa, mas posso lhe garantir que ser lenda não quer dizer que a gente viva para sempre, lenda também morre doutor.
— Acho que a senhora é que está enganada, lenda é historia, quando eu falo em lenda, falo de um fato que realmente aconteceu, então historia não morre, estou certo?
— Morre sim e posso lhe provar.
— Como?
— O senhor é daqui mesmo? Conhece o Amapá?
— Não, vim pra o estado em busca de trabalho e acabei por ficar, moro em Macapá há dez anos, portanto já aprendi muito das coisas daqui.
— Tá certo doutor, pois vou lhe contar uma história que vi acontecer e esta tenho quase certeza que o senhor não conhece. Há muitos anos atras existia uma aldeia de indios próxima daqui, nesta aldeia nasceu uma índia muito linda, naquela época era comum os chefes da tribo escolherem a mais bela índia e entregar a Tupã, sendo assim a indiazinha foi escolhida, mesmo sendo amada e admirada por todos que a conheciam e Ter recebido a honra de ser noiva de Tupã a indiazinha vivia triste por não poder ser livre como seus irmãos. Um dia enquanto tomava banho na beira do rio foi avistada por um boto, encantado com sua beleza o boto se transformou em um cisne encantou e possuiu a indiazinha. Meses se passaram até ela perceber que estava prenha e descobrir que o cisne da beira do rio era na realidade um boto. Com medo da reação dos índios quando descobrissem o que havia acontecido ela foi para o meio da mata esperar a criança nascer longe dos olhos de todos. Nasceu uma menina tão linda quanto a mãe, recebeu o nome de Sofia. A mãe ao olhar seu rebento sabia que nunca seria perdoada por seus irmãos, então mesmo sofrendo muito atirou a criança no rio e retornou para a tribo na esperança de que não fosse descoberta. O boto olhava de longe o desespero da índia, e ao ver sua filha sendo atirada no rio transformou-a em uma cobra grande. Dizem que ela mora no rio que passa na frente de Santana, um dia a cobra grande Sofia vai acordar do seu sono e nesse dia a cidade irá para o fundo do rio. O senhor já tinha ouvido falar nessa história, doutor?
— Não, depois de adulto esqueci os sonhos de adolescentes e hoje já não acredito em crendices populares
.
— Tá vendo doutor, são pessoas como o senhor que deixam as lendas morrerem.
— Não é bem assim, alguns acreditam outros não.
— O senhor disse que não acreditava, e também disse que queria ser uma lenda, não entendi, o senhor deu um nó na minha cabeça.
— Tá bom, vamos ver se consigo explicar, acho que usei o termo errado, o que eu quis dizer é que gostaria de fazer parte da historia do mundo. Mas vamos deixar isso pra lá a senhora conseguiu me deixar curioso, continue a historia me diga o que aconteceu com a mãe da Sofia
— Ao voltar para a tribo, Tupã, por ser um Deus, já sabia do ocorrido, como castigo por sua covardia Tupã determinou que a alma da índia ficasse vagando até que sua filha acorde, só então poderá pagar pelo seu pecado. Acredite doutor tudo que lhe falei é verdade pois vi acontecer.
— Desculpe, como posso acreditar em uma historia que aconteceu a tanto tempo, talvez a séculos, a senhora não me parece tão velha assim, a tribo da qual falou com certeza já nem existe mais, isso deve ser invenção do povo.
— Bom doutor, eu lhe contei, já cumpri minha obrigação de hoje, agora tenho que ir.
— Espere, me diga quem é a senhora.
— Eu, doutor, sou a indiazinha que pariu Sofia, tenho por obrigação contar a historia de minha filha para que a lenda não morra e um dia eu possa pagar pelo meu pecado. O senhor pode até não acreditar no que lhe contei, mas tenho certeza que contará para alguém e esse alguém também contará, assim uma cadeia será formada e a lenda da cobra grande Sofia não vai morrer. Eu vou continuar contado para todos que, como o senhor, venham aqui achando que os seus são os maiores problemas do mundo, um dia minha filha acordará de seu descanso, aí eu vou pedir perdão e descansar em paz.
Virou para o lado tentando ver melhor o rosto da velhinha simpática que falava com ele, mas deparou-se com o nada. Voltou para o bar novamente, sua vontade por um copo de cerveja havia triplicado.

Araciara Macedo

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